O coração das flores


Fotografia de V. Solteiro,
Parque Natural da Ria Formosa
Março de 2008
Não murcham
as flores
que despontam
pela boca
do coração
O que seca
são os lábios
gretados
pela sôfrega
sede do betão
V. Solteiro, 31.03.08

Trago dentro de mim um mar imenso...



"trago dentro de mim um mar imenso
feito de vagas tristes
e sonhos vagos


o horizonte é uma manhã
que eu quis minha para ser eu


e para porto de abrigo escolhi uma tarde
que soubesse chorar a morte do sol"


"[Trago dentro de mim um mar imenso], poema de José Rui Teixeira


"Over blue blue sea", fotografia de Alexander Lobanov, in http://www.photoforum.ru/

Só o mar ficou perto de mim...



"Feliz, quem sabe, o vento. Sem memória,
beijando-me nos lábios, ele abraça
o meu destino às cegas na paisagem.
É sempre nesse instante que regresso
à poalha do céu onde começa
talvez a maldição, talvez o encanto
de invocar-te em silêncio. Porque, eu sei,
entre palavras morre a cor dos sonhos,
o vão pressentimento de estar vivo.


Feliz talvez o vento e no entanto,
arrasta ainda areia e vagas vozes
na praia ao abandono. A luz da tarde
encobriu-se de névoa, só o mar
ficou perto de mim - agora é simples:
as ondas trazem novo o teu sorriso,
movem o seu abismo nos meus olhos,
mas lágrimas nenhumas vão salvar-me
o corpo, a alma, as cinzas, esta vida."



"Praia", poema de Fernando Pinto do Amaral

"Ghost in the beach", fotografia de Renato Cortes, in http://www.photoforum.ru/

Eu quero morrer no mar...


"Olha os meus olhos morena
porque a aventura é ficar
se a minha terra é pequena
eu quero morrer no mar.

Lençóis de algas e peixes
de barcos a menear
no dia em que tu me deixes
eu quero morrer no mar.

E se o negro é a tua cor
respirando devagar
depois do amor meu amor
eu quero morrer no mar."


"Eu quero morrer no mar (coladera)", poema de António Lobo Antunes

"The Black Sea", fotografia de Igor Torgackin, in www.photoforum.ru/

Mar: essa palavra tão azul...



"Lentamente construo estes murmúrios,
nesta palavra mar já tão profunda.


Solto o vento de rodas as viagens,
nestas praias de gente sem fronteiras.


Pequenas multidões pulsam a vida
e o mar apenas sobe mais azul.


Minucioso, espalho o meu olhar,
pelo secreto adeus do horizonte.


No som tão repetido dos navios,
há muito se esgotaram as sereias.


Desce a preguiça pela tarde lenta,
nas horas o silêncio vem de longe."



"Tarde de praia, ao longe", poema de Rui Namorado
"By the Sea", fotografia de Aelita, in http://www.photoforum.ru/

Quando vier a Primavera...



"Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.]
A realidade não precisa de mim.


Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.]


Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.]
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?]
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.]
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.


Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.]
O que for, quando for, é que será o que é."



"Quando vier a Primavera", poema de Alberto Caeiro
"Spring is coming", fotografia de Chandru Shahani, in http://www.photoforum.ru/



Por dentro...



"assim de frente
ao espelho


eu tu
ut ue


por dentro


ous
sou


na vida an adiv
na morte an etrom


de frente
sem
tempo


tu ut
ue


Um"



"assim de frente ao espelho", poema de Maria Azenha, in "A Chuva nos Espelhos", edição Alma Azul, Fevereiro de 2008

"The mirror 3", fotografia de Karl Vock, in http://www.photoforum.ru/

Edifício estelar

Fotografia de V. Solteiro,
Serra do Caramulo,
Janeiro de 2008
coluna
arquitrave
fuste
capitel
assim
se edifica
o gótico
edifício
este
lar
fachada
emoldurada
de líquenes
e de musgo
V. Solteiro, 19.03.08

Equilíbrio...

Fotografia de V. Solteiro,
Serra do Caramulo,
Janeiro 2008

Precário

é o ofício

da penumbra

Perene

o artifício

da luz

V. Solteiro, 18.03.08

À mesa, com a poalha do tempo...



"na hora de pôr a mesa, éramos cinco:
o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs
e eu. depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois, a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva. cada um
deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho. mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo, seremos
sempre cinco."



["Na hora de pôr a mesa, éramos cinco"], poema de José Luís Peixoto

"Table and chairs", fotografia de JP Zorn, in http://www.photoforum.ru/

Pai-sonho...



"Pai, dizem-me que ainda te chamo, às vezes, durante]
o sono - a ausência não te apaga como a bruma
sossega, ao entardecer, o gume das esquinas. Há nos]
meus sonhos um território suspenso de toda a dor,
um país de verão aonde não chegam as guinadas da
morte e todas as conchas da praia trazem pérola. Aí


nos encontramos, para dizermos um ao outro aquilo]
que pensámos ter, afinal, a vida toda para dizer; aí te]
chamo, quando a luz me cega na lâmina do mar, com]
lábios que se movem como serpentes, mas sem nenhum]
ruído que envenene as palavras: pai, pai. Contam-me]


depois que é deste lado da noite que me ouvem gritar]
e que por isso me libertam bruscamente do cativeiro]
escuro desse sonho. Não sabem


que o pesadelo é a vida onde já não posso dizer o teu]
nome - porque a memória é uma fogueira dentro
das mãos e tu onde estás também não me respondes.]"



[Pai, dizem-me que ainda te chamo, às vezes, durante], poema de Maria do Rosário Pedreira

"In the hand of the father", fotografia de Thomas Joachim Muus Stensballe, in http://www.photoforum.ru/


Mãe-flor



"As palavras de minha mãe são flores
que nascem e desnascem todas
as primaveras

estas de março são pássaros que pousaram
em ramos de pessegueiro

e eu corro como um rio
para levá-las até à foz
com um relâmpago no peito"


"As palavras de minha mãe", poema de Maat, publicado aqui:
http://vivaosol.blogspot.com/

"Peach Flower", fotografia de Alexey, in http://www.photoforum.ru/

Casa-mãe...



"Não minha mãe. Não era ali que estava.
Talvez noutra gaveta. Noutro quarto.
Talvez dentro de mim que me apertava
contra as paredes do teu sexo-parto.


A porta que entretanto atravessava
talhada no teu ventre de alabastro
abria-se fechava dilatava.
Agora sei: dali nunca mais parto.


Não minha mãe. Também não era a sala
nem nenhum dos retratos de família
nem a brisa que a vida já não tem.


Talvez a tua voz que ainda me fala...
...o meu berço enfeitado a buganvília...
Tenho tantas saudades, minha mãe!"



"Infância", poema de José Carlos Ary dos Santos, Lisboa, 1937-1984
"Young mother", fotografia de Jack O Daniel, in http://www.photoforum.ru/

Os olhos rasos de água...



"Cansado de ser homem durante o dia inteiro
chego à noite com os olhos rasos de água.
Posso então deitar-me ao pé do teu retrato,
entrar dentro de ti como num bosque.


É a hora de fazer milagres:
posso ressuscitar os mortos e trazê-los
a este quarto branco e despovoado,
onde entro sempre pela primeira vez,
para falarmos das grandes searas de trigo
afogadas na luz do amanhecer.


Posso prometer uma viagem ao paraíso
a quem se estender ao pé de mim,
ou deixar uma lágrima nos meus
olhos ser toda a nostalagia das areias.


É a hora de adormecer na tua boca,
como um marinheiro num barco naufragado,
o vento na margem das espigas."


"Os olhos rasos de água", poema de Eugénio de Andrade
"Crying of nature", fotografia de Pavel Anukhin, in http://www.photoforum.ru/

Tori Amos: a voz do silêncio...

Como uma respiração...



"As que procurei em vão,
principalmente as que estiveram muito perto,
como uma respiração,
e não reconheci,
ou desistiram e
partiram para sempre,
deixando no poema uma espécie de mágoa
como uma marca de água impresente;
as que (lembras-te?) não fui capaz de dizer-te
nem foram capazes de dizer-me;
as que calei por serem muito cedo,
e as que calei por serem muito tarde,
e agora, sem tempo, me ardem;
as que troquei por outras (como poderei
esquecê-las desprendendo-se longamente de mim?);]
as que perdi, verbos e
substantivos de que
por um momento foi feito o mundo.
E também aquelas que ficaram,
por cansaço, por inércia, por acaso,
e com quem agora, como velhos amantes sem
desejo, desfio memórias,
as minhas últimas palavras."



"Todas as palavras", poema de Manuel António Pina, Sabugal, 1943
"Air to breathe", fotografia de Birgit Guderian, in http://www.photoforum.ru/

Girândola

Fotografia de V. Solteiro,
Serra do Caramulo,
Janeiro de 2008

Maciça

girândola

que sangra

as veias

do ar

e contamina

a pureza

das fontes

Eis o reflexo

das mãos

dos homens

no flanco

da montanha

V. Solteiro, 02.03.08